quarta-feira, maio 07, 2008

Ode às mãos

Para Levi Bucalem Ferrari


Minhas mãos tão usadas
eu vos saúdo nesta ode.

Que prendeis o alimento levado à boca.
Energizadas, para o aperto fraterno.
Eu vos reconheço nesta ode.

Mãos estendidas às crianças.
Elevadas às orações.
De palmas lidas: a sorte há muito lançada
mas que só hoje se revela, apascenta e fala.

De tantos toques, trocas, carícias.
Mãos rudes, contundentes, ásperas.

Eis o intransferível; o tátil prazer de sentir-vos construindo poemas.
Mãos de engenheiro: laboriosas mãos
que não mais temeis vos escravizardes à vida.

*

Ó mãos tão usadas!
Espalmai-vos e continuai nossa História
(tudo tão difícil, até que vós falásseis).

Minhas mãos
eu vos quero limpas
eu vos quero largas:
— Limpas! Largas!

Minhas mãos eu vos agradeço
vos olho gravemente
e vos oferto a todos os homens
minhas mãos.

“Guerra diária”

Para Renata Pallottini


Paixão de escrever
não sou mais capaz
de vivenciar-te?

Áspera solidão
já fui mais capaz
de resistir-te.

Quando se tem vinte anos
é fácil morrer de dor
é fácil morrer de amor.
Restam sempre outras mortes
para serem vivenciadas
no desencontro de amores
e nas fundas solidões.

Mas onde minha obra prima,
penhor do meu sono,
avidez matinal,
minha fuga para o mato... e beber-te, Poesia, onde?



*

O tempo nos submerge.
Silenciosamente as doenças se infiltram.
Morrem companheiros, morrem
ilusões, amadas exuberantes.
Os naufrágios. As decepções. Os desentendimentos.
O cansaço. As injustiças. A impostura da mediocridade.

Já fui eterno
(raso remanso)
hoje envelheço

(água de poço)
contida e funda:
o poeta mais denso.

A poesia mais densa.
Mas a guerra não cessa
(não há mais alimento

a munição acabou)
não deixo mais rastro
ninguém mais me acredita...

Salvo meu coração de artista
validando esta guerra diária:
— Todavia, um ato de paz.

sábado, abril 19, 2008

Dialética

Para Ricardo, meu filhinho


1 ou 2. Precisar constante — como todas as crianças —
de um afago, um sorriso, um olhar...

2 ou 1. Ser um rochedo.
Roído pelo vento — infinitamente...

Altas solidões

Para Eunice Arruda


Elas insistem de longe em longe...
E me inundam de conceitos afinal superados.
Ásperas solidões que me percolam deixando poemas e um lívido suor de remorso.
Elas se pejam por tanta luz roubada ao dia — até que anoiteça... e volto.
E voltam (as solidões), em crescente espiral de lucidez.

*

Mas, altas solidões, obrigado!
Útil viver-vos mesmo chorando.
Vós me devolvestes
— altas solidões —
vós me devolvestes...

— A vida compartilhada.

quarta-feira, agosto 08, 2007

Apenas este presente

Nem gesto no exíguo espaço
De riso brando e perfume
Levíssimo. Nem palavra na garganta
Inútil, nem língua
No dente, beijo
Na testa.
Nem olhar grave ou sereno.
Nem o aperto de mãos.
Este poema, apenas
— Ela, a poesia quis assim—
Soprado do pulmão dos homens do povo.

Nota de orelha

Dez anos de silêncio
Amigo,
Para entregar-te agora este punhado de palavras.
De muita valia?
Não quis eu o impossível? Falem!
Falem falem falem minhas palavras
Um dia escritas à sombra
De tua presença amiga
Amigo.
Eu o beijo que chegou tarde, morto
O desejo, e se evapora.
Talvez um passo maior...
Todavia que a perna e caio
Ao pé de intransponíveis montanhas
O eco das palavras apenas
Palavras, eco, palavras.
O amor pra dentro
Não tem resposta,
Tem eco frio, desgosto
De uma vida-parede.

Mas é tempo bom, há
Noite fresca claro jardim
Tempo bastante de recomeçar
O tempo presente
Dizer-te presente! Fazer-me
Presente, oferenda, voz fraterna à orelha
Deste livro. Antes:
À tua orelha amiga,
Amigo.

Decassílabos da musa

I / Ontem

Eu disse, en passant, que sou bem pobre.
Lhe disse, demodé, do meu afeto.
Falei, devagarinho, de poesia.
Com polícia: c’está me enlouquecendo.

II / Hoje

Você me faz voyeur embevecido.
Você me angustia ao ver meus elos.
(Se não lhe agradasse o azul serrano,
ele e você seriam menos belos).

III / Amanhã

Gritarei sozinho olhando a escarpa
(porque — só — é o destino de quem ama):
— Ingrata, já passou? Tu vives, serra!
Mas você, muito mais que finda — linda

sulcando versos nus em mim — ainda...

Cena

Ele já não esperava mais nada.
Sequer um caso vulgar.
Mas ela surgiu transparente
Deixando no ar
— no ar não, no peito —
Um frio que vinha das vísceras, uma vontade de fumar
Um não sei quê nem pra quê.
Ela buliu —
Baixando os ombros tesos.
Ele se deslumbrou.

Musa

Para Maria Emília

Quem entrou em minha casa
e meus livros espalhou?
Remexeu minhas gavetas
meus poemas remarcou?

Quem beijou-me de mansinho
ao meu corpo se juntou
espantou minha tristeza
e sumiu, me abandonou?

Bolero do encontro

Nos tocamos no mesmo tom, minha querida
Fomos um duo de cordas na mesma canção
Foste luz, uma clave de sol em minha pauta perdida.
És a pausa e as notas mais puras do meu violão.



Francisco Moura Campos

quarta-feira, abril 18, 2007

Cristina

Que afetuosamente editou meus primeiros poemas
sob um selo inexistente
quase a contragosto do autor, sem revisão, desenho de
capa
ou título.
E que muito me comove.



Dizem meus versos
Árias, carinho
Do coração?

—Diz teu livrinho
(Pelos meus versos)
Minha emoção.

Tristemente

No falecimento de Dona Adelaide
mãe de Gilson Vasconcelos


1.1 A Bia me ligou que sua mãe morreu.
O trabalho estancado. Pausa oca.

Vontade de dizer: Moringueira.
Disfarçado na ternura elástica de um abraço telefônico até a prefeitura de Santa Adélia — que o afagasse forte e intensamente. Você não estava.

Eu distante.
Os colegas apartearão: Que se passa?
Tossirei: é uma triste saudade de Vinícius,
Sem dizer que é de você.

Na alameda Lorena vejo.
No vôo de cada pássaro vejo.
No lenço que levo aos olhos: Moringueira.
Nos papéis de ofício: Moringueira
Em qualquer ofício de Prefeitura: Santa Adélia
— Anoitecendo... Moringueira.
Em cada estrela que surge: Moringueira.
É sempre o mesmo amigo. Outro
O sorriso que vagueia.

1.1 Penso : amanhã vou a sua casa.
—Mas você não terá retornado.
Indecisão: irei pra Botucatu?
Pouco importa. Meu passeio rotineiro e na serra
Será útil.
Pasmarei: há quando tempo não via você?
Foi espera de poesia?
Poesia presa no coração...

1.2 Ser poeta (eu aceitei)
É viver humildemente
Daquilo que se escreve —
Mais do que se vive.

Lúcido retorno pra casa.
Triste, e a noite vazia.
Rudemente na cama nua
Pago o preço da poesia.

quarta-feira, abril 11, 2007

Canto ao nosso poeta

I / Prelúdio

Que brotaste do poço fundo
Água murmúrio, enternecimento,
Zumbido eterno,
Abelha que não cessa.

Que brotaste do poço fundo
Corda tinta aos pálidos,
Sino, gravata vermelha
Aceno de vida para todos.

Que tens postura discreta,
Olhar severo para dentro e ti,
Policias teu violento amor
Vôo de sabiá se em as de poesia

Que não temes o estafeta
A cor do telegrama, o menisco
A maleta de pó e chumbo
Na estrada em que caminhas.

Que de ritmo, pousada, luar,
Fremir de mar demais,
Poeta maior, pai, irmão de João
Assim, em humana sintonia,
Te compões.

II / Sonata num ombro amigo

Te habitamos
Cidade repleta ruas que vadiamos praça central sol dos trópicos
Farol no lírio de um coração humilde
Agudíssima sensibilidade vigilância carícia premissa missiva
Olhos míopes de varrer léguas de setenta anos batendo vida sem temer sofrimento
Solidão em que as nossas se inclinam se beijam se dissolvem e juntas ressuscitam ... indivíduos de maciça fraternidade.


*

Tua unidade é uma suave boca jejuando o espanto.
De fato és
Ocasião, momento, lugar de existência.
Em teus extraordinários privilégios
Encontro um homem comum:
Cic. Identidade. Objetos de uso pessoal. Registro num livro de Minas.

Alguns desejos: de comida, amor
Tua carne que evolui,
Tua restrição, uma idade,
Tu simples...
Estas no bar, na esquina,
Jantas conosco agora,
Morres depois...
Ressuscitas ontem,
Transitando num arco-íris cotidiano à altura insigne dos homens comuns.

Nenhum de nossos bens
(Que tanto mais amas,
Se mais esmagados
No populoso deserto da tirania)
Escapam se teus poemas.
Mas foram algum dia teus
Os teus poemas?
A poesia, na janela,
Em esgar de cumplicidade... nos acalma.

III / Sinfonia Inesgotável

Tuas palavras
Teu oficio
Gotejo
Dor viril (maior se no escuro que tanto cantaste para melhor conhecê-lo)

Sonho de viver presidindo a dor
Cirurgia de cérebro coração vísceras
Alvura de roupa
Soro
Veias grossas
Sanguínea aurora

Tuas palavras
Redescoberta
Doçura
Amizade
Aspereza
Lanças de pontaria infalível
Livre trânsito nos infinitos caminhos do sentir
Nenhum desprezo aos mitos que cultuamos (agradam-nas alimentar nossa frágil tessitura)
Quanto acréscimo! (nós falhos à espera de seus dons).

Tuas palavras
Ciência (todas e somente
necessárias e suficientes)
Forma
Teor
Formateor (termo do esperanto e da brutal coerência que elas encerram)
Fortuna
Inventário sem cartórios
Minas que penetramos
Celeiro sem chaves
Ração essencial que o prato trêmulo recolhe... e nos saciamos.

Tuas palavras
Mãos encordoadas
Dança do amor fraterno

Brinde

São tantos os homens
São tantas palavras
Soando a esmo
Mas sempre se fecham
Em torno de ti
Num ramo de rosas
As rosas sorrindo
As rosas do povo
(A rosa do povo)
Ciranda sorrindo
Tuas próprias palavras

IV / Teu Sopro No Meu Oboé

Sinto que caminhas
Na ponta da nuvem
No fundo do mar,
Sempre o mesmo sapato.

Sinto que conversas
Com bichos, com coisas,
Com homens, arcanjos
Sempre o mesmo flautim.

Sempre o mesmo homem,
Insone, se noite alta,
Insolúvel, se fluida membrana
A vida que te rodeia.

*

Velho mestre, e teu segredo?
Inquieto-me... Onde compraste?
Teu doce? O sal... Teu convite?
E tua estrada... círculo fechado em Itabira,
Atalho aberto em carne pra qualquer irmão conhecer Itabira e qualquer canto da terra?

Perdoa se te pergunto.
Indagando melhor percebo
Que segredos não são achados.
Indagando mais fundo aqueço
Teu segredo inumerável... nunca o mesmo,
É sempre outro segredo,
Teu segredo que tanto sinto.

V / Ponteio de Gume

Tudo é contorno do impossível
Na enseada de desejos.
Flutuo na lâmina do vento,
No assobio do arame solitário.
Percolo o calcário do osso.
Estou ontem. Sequer sofro os fatos que couberam num dia.

Agora tens uma ordem
Aquém de toda malícia:
De vida apenas, sem mistificação.
E a utopia que boiava imóvel,
A teu leve empurrão se desloca enorme... inexorável.

VI / Fantasia Entre Músico e Oficina

Passeando em teu elefante posso viver nosso tempo parar na alcova de teu leiteiro de Cyro Novais descer as encostas do Cauê.. dos Alpes? dos Andes?
Desejo débil de referenciar-me estar em São Paulo rua 13 de Maio
Mas tua sensibilidade mostrando minha sensibilidade no dia na noite o dormir inconformado o nó em minha garganta e ai que tua vida propõe a terra de tua poesia as lembranças molhando meu travesseiro antes do alvorecer.
O relógio orvalhado exibe teu mundo patético o tempo elidido cristalino cinema o espaço elidido... a saudade de mim viajando nenhuns quilômetros... estou em tua casa lugar onde minhas feições se refletem se avolumam.
Estarias dormindo? Um rosto-poesia acaso repousa?
Percebo que sorris. Sorriso... teu rito implícito.
Tua mão (ou a mão que fabricaste?) apaga a luz sobre minha mesa e começo a lamber o pescoço de um dia que inexperiente principia!

VII / Polifonia Para um Ofertório

No canteiro setembro-lua
O vicejo de tua sombra
(Mais que Europa, França e Bahia)
De homem? De Poesia?

Vai apagando o cantador
Deste canto-tua-matéria,
Mais que vozes, nossas vidas,
Já não importa o seresteiro.

No hífen braço e ofício
Carlos — Drummond
(Distância de olho e lágrima)
Nossas vidas te ofertamos.

Tua vida te devolvemos.

quarta-feira, abril 04, 2007

Valsinha

A Trajano Carlos Figueiredo Pupo

A vida
Tão próxima, tão ingênua
Que um gesto não seja mais que
O movimento de um sentir
Profundamente.

Joaquim

Suas estórias não narram
Caso, situação ou fato.

Tudo que nos dá
É a mais rica poesia:
Seu olhar medido
Seu olhar alado.

Lira para Manoel Bandeira

I/ Antologia (Revista e diminuída)

A vida inteira que podia ter sido o que não foi
Vou–me embora pra Pasárgada
Quero esquecer tudo
Felizmente existe o álcool na vida.
Perdi o Jeito de Sofrer.
Ora essa. Não sinto mais aquele gosto cabotino da tristeza.
Hoje tomo alegria.
Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.
Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.

E minha vida ficava
Cada vez, mais cheia
De tudo
Pura ou degradada até a última baixeza
Eu quero a estrela da manhã.

Tu que me fizeste assim, Emanuel...

II/Carta

Estou-te encaminhando minha lira
Trilhando rugas
Que a poesia te sulcou
Poeta.

Mas já não tens endereço entre os homens
Um dia tiveste?

Tua mensagem celeste nos chega em versos singelos
De uma fidelidade que a tudo resiste
Perfurando, intacta, os furos jornalísticos e os partidos políticos do nosso país e nosso tempo.
Sem doutrina e as mais belas orações. Nelas, somo nós, teus devotos, que rezamos
Assim se perpetuam preces
Na fala do povo brasileiro
Esse povo que capturas em teus poemas
Este povo que tanto amas...

*

Tua humildade e paixão encadeadas
Banham os oito mil quilômetros de costa, os carvoeirinhos, Misael funcionário da Fazenda, os camelôs nas calçadas, o beco onde moraste...
Encadeadas, alagam tudo... vazando incautamente a maioridade que buscavas ocultar.

Contido sofremos:
Tua tosse, óculos, versos.
E menos compreendemos e mais sentimos tu mesmo, tua poesia.
Contigo nos comovemos
E sorrimos, ingênuos, na volta ao mundo a que nos levas numa casquinha de noz.
Contigo percorremos:
Susto, emoção, raio
— Teu alumbramento!
(Vamos viver de brisa Anarina?
O meu reino pelas três mulheres do sabonete
(Araxá)

Contigo vivemos
A perfeita arquitetura
A coletiva aurora


III/Rosa e Estrela

Vi tudo quanto é mais belo
Vi tudo aquilo que existe
Vi tudo que subiste
No sempre igual cotidiano.
Na frente do cotidiano
Por trás do céu e do mar
Em cada rosa, anônima
Em cada estrela no ar.
Na estrela, dele luzindo
Em minha vida verdadeira.
Vi tudo! – Do escritório...
Lendo e amando Bandeira.


IV/ Como ele me pediu

Meu Nosso Senhor
Tirai essa ânsia
Do meu coração.
Não é de dinheiro, de glória, poder.

Nem é de carinho
(que nunca faltou)
É de poesia
— Poesia presa no coração.

(Meu Nosso Senhor
Paixão mais intensa
Não existe não.
Meu nosso senhor
Tirai essa dor...
Do meu coração
Que dor mais doída não existe não
Meu nosso Senhor


V/Tributo Meigo

Manuel:
Ídolo carinhoso.
Mito, sem mistificação.

Manuel
Cada dia mais forte:— Luz da minha vida inteira

Pablo Neruda

I / Aproximação


Mais franquia aos namorados.
Mais respostas ao pensamento.
Mais estâncias aos sentidos.
Mais olhar ao firmamento!

II/Companheiro


Velho Neruda
Arauto do Chile
Delator dos opressores
Braço estendido aos irmãos massacrados da América, da Espanha do mundo.

Velho Neruda
Faca na carne enfibrada
Martírio é, nunca mártir.

Velho Neruda
Fogo a incendiar-nos
Olhar nas dores do mundo
Fraternidade imortal
Canto geral para o dia geral
Pressentido.
III/Príncipe


Ó vida robusta e ensangüentada!
Teu fascínio entre os homens se instaura
Invadindo o mundo para sempre
Em efusão de azul e liberdade!

Ode na Cidade de São Paulo

I/Centro

Poderoso bulbo de cimento.
Rio de aço do trânsito.
Resistente é o amor
Dos que te amam.
Sábia e de cinza
Sorris do lirismo patrulhado do burgo
Que cerceia as melhores intenções.
Absortos te contemplamos:

Abrasas, fustigas
Reprimes, libertas
Enterneces, sevicias
Expulsas, cativas
Fascinas, desiludes

— Cidade enigmática!...


Não é o conhecimento de tua tecnologia e de tuas diversões inumeráveis.
Nem são as mil opções que ofereces a
Competentes, vadios
Endinheirados, falidos
Intelectuais, analfabetos
Prosadores, poetas
Lojistas, ambulantes
Atletas, mutilados
Participantes, irresponsáveis
Lúcidos e desajustados
(Estes não são teus filhos : apenas te usufruem).
Também não são tuas distâncias invencíveis.
Nem tua miséria
Espalhada entre milhares que te habitam abertamente sob os viadutos
centrais, nas favelas ribeirinhas, nos esparramados subúrbios.
És tu mesma, tua maciça
Inequívoca poesia
Entre automóveis, caliça, pó, desastres, furtos, solidões
E encontros... entrançados!
(Certamente ignoravas o magnetismo existente em tuas ruas dispersas
E os encontros extraordinários que nos possibilitas —
A começar da própria alma
Na individualidade anônima que imprimes a cada um dos teus).

Tuas noites alcatroadas...
São todas as profissões noturnas.
São bares, boates, restaurantes, polícia, táxis circulando, lixeiros, bombeiros, ambulâncias, hospitais atentos.
Os talhes exuberantes. O luxo. O carro importado. O chofer. Boêmia instalada em cada esquina.
A boa música
E a música comprimida no fumacê subterrâneo
Respirando entreaberta... de passagem.
A prostituta. O travesti. O alcoólatra. O viciado à procura de seringa no [tráfico mudo das drogas.
Mendigos, tantos, procurando o quê?
Menores abandonados.
É a fome circundando os restaurantes: olhos estriados
Atrás do vidro inquebrantável!
Rigorosa é a tua noite.

Como tudo o mais em ti.
E, com rigor,
Gravamos os fatos vagalumeando na memória lúcidos flashes...

— Lúcidas luzes!
Clareando a história que ama:
— Bela. Sobrenatural.

*
Da janela vejo
A poesia verde
Escorrer ciosa
No cenário plúmbeo

De concreto e aço
Mesclada ainda
Com as cores róseas
Da manhã silente

Amanhecida em ti.

São quatrocentos anos comprimidos
No Pátio do Colégio, no Anhangabaú, no Mosteiro de São Bento, no Paissandu, no Glicério, onde mais?

São as ingenuazinhas ruas centrais que jamais suspeitaram outrora de sua tumultuada ocupação.
Vias expressas cortam o cenário paralítico.
A 23 de Maio nos leva à Congonhas de viagens celestiais...
O Elevado Costa e Silva subverte a lírica São João de Vanzolini.
Nosso Memorial da América Latina é a utopia baixada ao nível da miopia fronteira.
E o Centro Cultural... expresso
Que parte a velha Liberdade!

És todas as contradições:
— Multifacetada. Dialética:
Reconstruída.

O domingo suspende teu tempo
à espera da segunda-feira.
A opressão escorre das paredes e encharca o aparelho de som.
Livros umedecidos, vazios.
— Vazios os aeroportos!...
E recobramos esta outra vida entre nossos irmãos
E vamos para o futebol, o jóquei, a sinuca, a bocha, o carteado
Onde o calor humano continua existindo intensamente.

Intensamente, operários da construção civil tomam os bares e cervejas.
O churrasco de gato sitia as praças públicas. Empregadas domésticas cochichando seus namoros...
Teu povo – se espalhando livre em teu domingo desengarrafado:
— Feliz

II/Paulistano

O paulistano destila
A mais densa poesia
Que jamais desaprendeu
Na convivência diária
Com os demais brasileiros
E a coorte de estrangeiros
Que avidamente exploram seu espaço original.
Ó pessoa mais confiável!
Criatura mais do chão.
Há em ti um visco
Que apodrece o fraco
Prende a autonomia e me polariza
Em torno de ti
— Irmão paulistano.

III/ Bairros

Mooca Zona leste

Onde Mariana mora.
E as vielazinhas ingênuas, como o olhar de minha filha.
Que mais ainda?
Da melhor pizza.
Dos bares de verdade onde tem café coado, cigarro, pão francês, cerveja de freezer, amplos balcões de mármore, pisos abaulados nas portas do entra e sai ininterrupto.

Outros, coitadinhos... com mesas de sinuca de caçapas viciadas, rádio batata, caixotes de assento, truco, fumo bom, jogo de bicho, doces vencidos que nunca no passado alguém comprou, farta cachaça de rolha ou tonel.

E fala musicada do teu proletariado.

Barra funda Zona Oeste

Da emoção de eu ver também o casario antigo que Mário de Andrade
Impregnou com seu olhar alongado
De ouvir o trem que Mário ouvia.
A estrada de ferro te corta ao meio.
Os dormentes captam a vibração fugaz da gente pobre que viaja para o interior.
Interior: sentido do rio Tietê!
Interior do estado de São Paulo pra onde Mário viaja sempre comigo...

Pacaembu

A casa de Guilherme de Almeida guardando o vale.
O Estádio Municipal vibrando gols de placa!
A Rua Tupi, que era do meu escritoriozinho de engenharia Nossa Senhora vontade de chorar.
Pequenina Rua Tupi, onde trabalhávamos eu e Gilson Vasconcelos.
— Tupi... no meu coração caipira.

Santana e altos Zona Norte

Por perto do legendário Carandiru.
Depois meu corta-caminho pro aterro sanitário de Vila Albertina
Adiante a encantadora Cantareira!

Caxingui Zona Sul

Da Avenida Francisco Morato que os mais antigos do lugar chamam: a estrada...
Que mais ainda do Caxingui?
— Roberto Saito mora ali.


Jardim Botânico

Das deliciosas tardes de evasão
Na minha lira desafinadinha...


Ibirapuera

Nos fins de tarde de verão caminhando entre viveiros... vendo versos, a delícia dos colos pernas queimadas cabelos descomunais, namoros e todos os demais exercícios físicos.

Em ti, a criança permanece.
(Escrevi um poema chamado Ibirapuera.
Se eu fosse verdadeiramente poeta escreveria dez!)


Jardins

Restaurantes caros, comércio sofisticado, carros em filas duplas triplas e nas calçadas.
O passeio desocupado das madames.
E um prédio da Sabesp na Padre João Manuel onde trabalho há nove anos seja tudo pelo amor de Deus.

Mas nas noites feéricas teu dinheiro lento começa a distribuir-se por entre vidas mundanas:
Manobristas e leões de chácara de amplas janelas recebendo gorjetas industriárias.
O menino florido esnucando o cavalheiro.
— “Uma rosa, ela merece”
É a ternura descalça trilhando teu chão de antigas árvores a floresta orvalhada retornando....
— Dia geral!

Brinde

Dia geral em São Paulo!...
Luz – no meu coração.

Parada São Carlos

I

Chegarei em São Carlos ao entardecer.
Esse entardecer vermelho e longe
Semáforo parado no caminho.

II

São Carlos me abrasará.
Mas o que sinto
Agora
É a ardência de uma encantação
Previa

III

São Carlos estará cheia de carros.
Nas ruas, as pessoas falarão de política, oportunidades, comércio.
Mas eu irei escutar somente o vento são-carlense
Batendo forte nos vidros da escola.

Sonho de Botucatu

Botucatu de meus gostos singelos.
Botucatu de minhas perplexidades.
E de minhas limitações.
De meus parentes sepultados.
De muito antes de mim: barro apenas —
Amassado nas botas do meu bisavô.
Botucatu enfarado na memória, no sangue.

Botucatu: lugar primeiro de minha poesia.
Meu achado maior ou único
Onde minha casa velha, alta, quintal gostoso, corredor florindo no meu coração.
O alto da serra clareando manhãs!
As seis horas da tarde exalando um vermelho roxo de silhuetas avulsas e a primeira estrela despontando...
Botucatu replay perene:
Eu menino, e o futebol nas várzeas
— Adolescendo... nas ruas ao luar.

II

Botucatu de não se querer jamais outro lugar.
Botucatu: a própria poesia—
Delimitada pela cidade.
Botucatu: sonho multicolorido...

— Quando se amanhece.

segunda-feira, março 05, 2007

Vento Serrano

Que vento uivoso
Vai varrendo siglas
— as siglas bancárias
E outros enigmas
Que o homem pregou
Por entre florestas

Que vento soprano
Vai espalhando signos
Distribuindo o pólen
De puras palavras
— Enternecimento
Provindo das flores...

Vem vento uivoso!
Vem vento soprano...
Vem vento celeste!....
Vem — vento serrano.

Espírito de Botucatu

A cidade que me dei
Ganha faculdades, semáforos, prédios, arrogância urbana, veemência de políticos, selos de classe
Mas não perde o espírito provinciano que me comove
O futebol vadio de suas vilas
A cachaça ardendo nas goelas suburbanas
As igrejas de paredes namorisqueiras
As festas de inverno com tanta gente tomando sol pelos gramados e moleques galgando pau de sebo.

Popular, feliz humildade!
Que me dei.

E que não perde a viola de botequim choramingando
Nem aquele alto de serra...

Que inventei.